domingo, 22 de dezembro de 2013

Jocelino Soares e seu belo PÉS DESCALÇOS



Vida de colono 
não permitia luxos. 

Só uma ou outra 
criança ganhava 
seus troféus


     
    A grande lente da máquina do tempo volta-se para o passado longínquo, e traz de lá imagens doces e ternas de um menino tímido que vivia se escondendo aqui e ali por entre pomares e jardins da fazenda em que morava. 
Encontrava-se embaixo de algumas árvores que ele não sabia o nome, mas que todo ano, na mesma época, elas deixavam cair ao chão bolotas cheias de espinhos - castanhas portuguesas -, nome que veio a descobrir anos depois. 
Quando as castanhas caíam, era sinal de que o Natal se aproximava, pensava ele. Grande emoção tomava conta da sua alminha, afinal, era dia de festa! Não como as que vemos hoje, elas eram simples, sem presentes, até porque a vida de colono não permitia esses luxos. Somente uma ou outra criança ganhava e mostrava aos amiguinhos seus troféus. Deixavam sem saber no coração dos que não ganhavam uma tristeza infinita. 
O menino de pés descalços morava em uma pequena casa de chão batido, onde as fechaduras eram de “tramelas”, as paredes soltavam pedaços do reboco, mostrando as feridas da pobreza. Como não havia forro, a luz do sol, a exemplo de Orestes Barbosa, “salpicava de estrelas nosso chão”, e ele brincava distraído com os astros, imaginando serem eles grande focos de luz a alumiar para sempre sua trajetória no palco da vida. 
Na véspera do grande dia, o pai ia até a cidade, e era aguardado com muita ansiedade o seu retorno. Quando ouviam na estrada o ronco da jardineira partindo, tinham a certeza que com ele o pai havia chegado. Em bando de sete irmãos, partia em desabalada carreira para encontrá-lo, e ver se tinha trazido guloseimas e os ingredientes para o almoço do dia seguinte. 
O quarto era simples, como tudo naquele casebre. Sobre a cama, colchão de palha. Quando alguém, ao rasgá-la, deixava ir junto pequenos pedaços de sabugos, era fatal, no outro dia, o lombo estava doendo. 
A espera pelo grande dia era tamanha que os galos ainda estavam nos poleiros saudando a manhã com seus cantos, ele já se encontrava em pé. Um pouco mais tarde, ouvia-se vindo lá da cozinha o som do alho fritando na banha de porco, não demorava para que a mãe dissesse que o almoço estava na mesa. 
No meio da sala uma mesa surrada pelo tempo e algumas cadeiras empalhadas com taboas. Sobre ela, era colocada, por ser dia especial, toalha bordada artisticamente pela avó e usada somente nessas ocasiões. 
Sobre o fogão à lenha, a panela de água ebolindo esperava pelo inesquecível macarrão da marca São Jorge. Seus fios eram compridos e ocos, acondicionados numa embalagem roxa. 
Os irmãos e a avó, sentados em torno da mesa, aguardavam impacientes pela tigela. Dentro, a macarronada com massa de tomate e queijo ralado. Em outra vasilha, um pernil de leitoa criada no chiqueiro e um frango assado no forno à lenha. Ninguém na roça tinha geladeira, os refrigerantes eram colocados dentro de um balde com água para se manterem frios. Para cada um dos filhos, e somente nessa época do ano, era servido guaraná caçula. 
O pai, ao entregar a bebida para cada um, tinha o cuidado de perfurar com prego, deixando pequeno orifício na tampa. “Tomem devagar, só tem esse”, dizia. Sorver lenta e prazerosamente cada gota do precioso líquido era algo indescritível mesmo estando quente. Como não estavam habituados com o gás da bebida, os olhos lacrimejavam num misto de prazer e espanto. 
Havia nessa cena o mais puro encantamento. A casa era de uma pobreza gritante, os filhos vestidos com roupas de dia santos, todos saudáveis, ali reunidos, comemorando o nascimento e a vida. Sim, eram pobres, mas com muita dignidade! 

JOCELINO SOARES  - Artista plástico.
 Membro da Academia Rio-pretense de Letras e Cultura 
(www.jocelinosoares.com.br) 

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