domingo, 16 de fevereiro de 2014

Jocelino Soares e "nossa" COLCHA DE RETALHOS


Colcha de retalhos

Jocelino Soares 

O duo mais famoso do Brasil, Cascatinha e Inhana, em 1952, numa versão de José Fortuna, gravou “Meu Primeiro Amor” e “Índia”. Foi sucesso estrondoso. Chegaram a vender mais de um milhão de cópias. No país, não havia tantas vitrolas para tocar tantos discos. Em 1959, repetiram a dose com “Colcha de Retalhos”, composição de Raul Torres, na qual a letra narra a história da mulher que foi morar com outro. Ele, com o coração partido, diz: “Aquela colcha de retalhos que tu fizestes / juntando pedaço em pedaço foi costurada / serviu como agasalho em nossa pobreza / aquela colcha de retalho está bem guardada / agora na vida rica que estás vivendo / terás, como agasalho, colcha de cetim” E, para se consolar, diz, choroso: “E quando chegar o frio nesse corpo enfermo / tu hás de lembrar da colcha e também de mim”. Quando deixei a roça, fiz questão de trazer comigo algumas peças e alguns utensílios que usava no dia a dia. Por exemplo, a “baciona” de tomar banhos, o caldeirão com tampa e garfo, a peneira de abanar café, dois sacos de estopa vazios, que serviam para colocar café em casca, um rádio, nossa primeira TV - portátil, à bateria -, um cobertor Parayba. Esse me foi passado pela minha irmã Maria, recentemente, e uma colcha de retalhos costurada pela minha avó, todos guardados com muito carinho. Ficam num canto. Vez ou outra, acabo esbarrando nesses objetos e, meu Deus!, quantas lembranças me trazem. Dia desses, ao abrir o maleiro do guarda-roupas, deparei-me com a velha colcha de retalhos. Tive o desejo de estendê-la sobre a cama. Pude admirar o capricho, a dedicação e o carinho dessas artesãs, que transformavam pequenos pedaços de tecidos em obra de arte. Padronagem, composição, harmonia das cores, tons, quadrados, triângulos e retângulos deixavam transparecer que essas mulheres, além de sensíveis, eram verdadeiras artistas. 
Fiquei longo período admirando aquela peça estendida à minha frente. Senti carinho e orgulho pela minha avó, por ter feito tão bela obra de arte. Aliás, ela o fez sem saber. Fez por intuição. Analisando, pude ver as sutilezas que envolvem cada detalhe. Simbolicamente, transferi para nossa vida cada retalhinho daqueles. Nós somos os responsáveis pela confecção da colcha da nossa vida. Nossa vida é composta de retalhos. Tem dias que o tecido é colorido, em outros, branco e preto, e tem dias ainda que temos que nos conformar com tons cinzentos. À medida que os dias passam, temos que juntar cada pedacinho e cabe a nós uni-los e transformá-los numa linda colcha. À medida que vamos avançando, vai depender do nosso viver, e como vivemos, para termos direito às cores de nossas preferências. Não tem como receber retalhos coloridos se a pessoa enxerga a vida em tons cinzas. Cabe a cada um compor sua obra de arte e transformá-la em algo agradável. De nada vai adiantar olhar em volta, desejando a do seu semelhante. Não vai conseguir. Costure a sua, una cada pedacinho do tecido, não desperdice tempo nem faça de qualquer jeito sua colcha. Ela será seu agasalho na hora em que mais precisar, lá na frente, quando sentir frio. Não o frio que qualquer agasalho aquece. E, sim, o frio da alma, que será aquecido com os retalhos dos dias bem vividos, ou não. A escolha é sua! Lentamente, dobro-a para colocá-la de volta no maleiro. Enquanto abro a porta do armário, as vozes afinadas de Cascatinha e Inhana parecem tomar conta do ambiente. Começo a cantarolar a antiga canção da dupla. Lembranças surgem e, sem querer, uma lágrima furtiva umedece a velha colcha de retalhos. 

JOCELINO SOARES 
Artista plástico. 
Membro da Academia Rio-pretense de Letras e Cultura 
(www.jocelinosoares.com.br)

Nenhum comentário: