domingo, 4 de outubro de 2009

Angélica Medeiros Cunha e seu JOGO DA VERDADE


Os alunos que iam a tarde na escola eram todos meio bagunceiros. Eu não me achava bagunceira, mas acontece, que, naquele ano, as apostilas não tinham sido abertas por mim ainda, e por isso, mamãe mandava eu fazer as aulas de reforço.
Foi numa tarde tenebrosa, quatro aulas de matemática, que, eu, e a Jussara...bem, das duas primeiras aulas, eu pude escapar. Fiquei então na quadra, sentada com uma galera. Estávamos em seis. Os três garotos eu conhecia, das meninas, só uma, a Jussara, que tinha conversado algumas vezes comigo; as outras, eram mais velhas, eu não conhecia.
Conversávamos, e daí, inventaram de jogar um tal jogo da verdade. Perguntas e respostas. Uma grande palhaçada. As perguntas mais comprometedoras. “ Já fumou maconha ?” Lucas respondeu que não. Mentiu, descaradamente. Confesso que preferia não ter entrado naquele jogo...” Já transou em lugares públicos ?” Guto riu, fez que sim com a cabeça. “ Agora é você !” Jussara apontou para mim. “ Eu ?” Gelei. E se ela perguntasse aquilo ?” Imaginava que eles não soubessem que eu gostava de meninas. Mas têm coisas que não se pode esconder por muito tempo...Não havia ficado com nenhuma garota da escola, mas podiam saber das outras...
Mandei Jussara perguntar logo. Ela riu, com malícia. Não, Jussara gostava de garotos, era meio maluquinha, mas gostava de garotos. “ Ingrid, já sentiu atração por pessoas do mesmo sexo que você ?” Foi como ser jogada, nua, na frente de um palco, a platéia lotada, etc...e tal.
Pessoas do mesmo sexo...Ainda bem que ela não disse : mulheres. Ficaria mais vermelha, mais ainda. Querendo enfiar a cabeça dentro de um buraco...Respondi que não e fechei a cara.
Todos, menos, Jussara, riram. Sim, eles sabiam. E agora, o que faço ? O que eu faço, meu Deus ? Inventei que estava precisando ir ao banheiro; eles que estavam entretidos na brincadeira, nem se importaram.
Me afastei, devagar, depois, andando mais rápido. Quando entrei pelos corredores da escola, estava correndo. Não olhei para trás, para os lados, devem ter pensado, aí vai mais uma maluca, das tantas que andam por aí.
Entrei no banheiro, muitas perguntas na cabeça...Por que o medo ? Por que você não assume de uma vez ? Sim, Ingrid, você sentiu medo, mas também, tesão, só de imaginar que ela pudesse...Será que Jussara percebeu ? Há umas duas semanas, peguei ela me olhando de um jeito...Ou será que é tudo imaginação minha ?
Nisso, a porta do banheiro abriu, ela entra....Sim, Jussara, que havia me seguido, sim, isso ela disse, e disse também, que queria conversar comigo.
- Por que você fugiu, Ingrid ?
Arrumo uma desculpa, digo que a brincadeira estava chata.
- Não, não foi por isso que você fugiu...Você quer ? pergunta
Um convite, dentro do banheiro, fechamos a porta...
- Eu sei que você tem tesão por meninas, eu também tenho...
Trancadas no banheiro da escola, nos beijamos.
Um beijo, tão lindo e tão calmo e verdadeiro, que depois, nos despedimos, como se tivessemos feito um grande favor uma para a outra.
Foi ela então para a quadra, já eu, fiquei andando, meio que perdida, nos corredores. Me sentia tão feliz que não lembrei da aula de matemática . O pior é que o professor avisou a diretora, sobre minha ausência. A diretora avisou mamãe e levei um sermão por isso.
Mas tudo bem. Nem liguei. Tinha coisas mais importantes porque preocupar-me. Jussara, por exemplo. Ainda mais porque agora ela sabia tudo de mim e eu sabia o que precisava saber dela...
Sim, éramos lésbicas. Deliciosamente lésbicas.
E o jogo só havia começado para nós duas.
Jogo só para mulheres.
Se é que eu preciso explicar mais alguma coisa...

Angélica Medeiros Cunha, com este texto venceu a primeira fase do Mapa Cultural de São José do Rio Preto,

Um comentário:

Andrea disse...

Muito bom o texto, mereceu o prêmio. A parte mais gostosa de ler é quando ela anda meio perdida depois do beijo. Essa sensação de flutuar é maravilhosa!
Já li outras coisas suas e gosto muito da forma como expressa a alma das palavras.
Beijo