segunda-feira, 9 de maio de 2016

Mário Soler e seu belo "O gato amarelo"


O gato amarelo
Mário Soler

O trabalhador rural Ovídio soltou o gato amarelo no quintal de casa e chamou a mulher para admirar a criação:
- Acabei de pegar da tia Maria. A coitada tá despejada de casa, sem ter um canto pra manter esse bicho...
De fato era um gato imponente. Grande, forte, amarelo, e andava com a classe dos grandes felinos. O bicho saiu logo a reconhecer o quintal da fazenda.
Momentos depois, Ovídio escutou um alarido. Correu porta afora e viu o bichano depenando filhotes de galinha de angola no viveiro do patrão. Num acesso de fúria capturou e esganou o bicho. Caminhou levando o animal seguro pelo rabo, rodopiou o corpo no ar e jogou o mais longe que pôde, pra evitar carniça.
- Esse gato não serve, é comedor de filhote... - bradou, já arrependido, pra se conformar do ato impensado.
Maria soube do fim trágico do animal alguns meses depois, por um parente que fora passear no lugar. E não conteve as lágrimas. Ovídio não sabia que a mulher, guerreira como tantas marias, trazia ainda abertas as feridas de um passado recente, quando morava em uma fazenda à margem do rio Tietê.
Bonita e asseada, mulher do capataz de fazenda, Maria caiu nas graças do patrão. Mas resistiu ao assédio dele, fiel ao amor do companheiro, a quem demorou a contar o ocorrido. A pressão cresceu, ficou insuportável. Inconformado com a recusa, o dono das terras fechava o cerco a cada dia. Primeiro, proibiu o chefe da família de trabalhar nas terras.
Sem ordenado, o marido de Maria viu rarear, pouco a pouco, as coisas de comer. Restava apenas a horta, mas o patrão, vingativo, ordenou que nada se colhesse dali, nem verdura, nem um simples pé de mandioca. Maria tinha presos em casa o marido desempregado e dois filhos pequenos para cuidar.
Como um bicho acuado, a mulher esperava o momento certo para dar o bote. Madrugada escura, ia cuidadosamente ao quintal, munida de uma faca, e colhia uma única raiz de mandioca por vez, para que o patrão não notasse. Em casa, cozinhava a mandioca com o que restava de açúcar e assim mantinha a família de pé.
Um dia, ela fez chegar aos parentes um bilhete pedindo socorro.
A família, frágil e faminta, seria resgatada dias depois. Mudaram-se e foi então que Maria doou a Ovídio o gato amarelo de estimação. O novo dono desconhecia as habilidades de caça do felino. E essa era a razão do sofrimento de Maria.
Além das raízes de mandioca furtadas no breu da noite, ela salvou o marido e os filhos com a carne de nhambus, juritis e rolinhas, que o bichano caçava no mato e trazia para comer na porta de casa...
Esta é uma história real. Maria terminou seus dias com dignidade em Rio Preto, onde viveu ao lado do marido e dos filhos que ela salvou da fome. O episódio lembra um caso de assédio de grande repercussão, descrito pela revista Veja (quando a publicação ainda era referência em jornalismo...), ocorrido com uma brasileira em lugar remoto na zona rural do Paraguai, há muitos anos, pela época do Natal.
Ela fugiu das investidas e ameaças do patrão num domingo, a pé, junto com a família, mas teve menos sorte. O marido e o filho morreram de exaustão e sede sob o sol escaldante do país vizinho. Só ela sobreviveu para ruminar a dor.

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