segunda-feira, 5 de outubro de 2009

Vicente Roberto Serroni e sua belissima crônica vencedora "Romeu e Julieta do metrô"

Reynaldo Damazio e o vencedor da crônica abaixo nosso amigo Vicente Roberto Serroni.

Lupércio, jovem de 30 anos, que quase nunca senta em suas viagens pelo metrô, certo dia visualizou um banco vazio e resolveu fazer uso do assento. Havia pegado o trem na Estação Sé e estava indo para Jabaquara, onde deveria entregar um documento importante a um cliente que o aguardava. Não demorou muito, a seu lado sentou-se uma velha senhora, que pelo visual, ainda não tinha saído da era dos hippies. Tudo no seu figurino lembrava o “paz e amor” daquela geração. Mas o que mais chamava atenção naquela figura estranha era o barulho de seus balangandãs, pendurados no pescoço, braços e cintura, fazia. Depois de se ajeitar, dando um “chega pra lá” em Lupércio, acomodou também uma velha bolsa surrada, confeccionada em barbante e com aparência nada elegante. De repente, apresentou-se à Lupércio, dizendo se chamar Julieta e começou a falar sozinha, como se estivesse brigando com alguém.
Esse monólogo de dona Julieta com o invisível prosseguiu até a próxima Estação. Quando o trem parou, ela também parou de falar. Ao sinal do locutor avisando para as pessoas não segurarem a porta, a velha senhora deu um forte tapa na perna de Lupércio e, chamando-o de Romeu, deu uma bronca num dos rapazes que havia atrapalhado o fechamento da porta.
--- Está vendo Romeu, esses vassalos que devem impostos ao Rei estão atrasando a chegada da cavalaria neste dia importante para o nosso condado! Você como representante desta turba precisa colocar ordem e disciplina. Faça alguma coisa?
Lupércio sentiu que as pessoas que lotavam aquele vagão olhavam para ele, não que elas quisessem uma resposta para a pergunta da mulher, mas uma solução para aquela situação. Por um momento sentiu-se acuado, mas refez-se logo e soltou um leve sorriso, como que antevendo o julgamento para dona Julieta. É claro que todos deveriam estar pensando - “é uma doida, uma maluca de dar dó!”. Para ele, que imaginava ser ela uma “hippie” perdida no tempo, agora vinha a idéia de que a vida daquela mulher era uma mistura de passado, presente e quem sabe, até do futuro.
--- Ergam-vos todos, oh! assalariados, o terceiro mandato assombra a história da democracia! – disse isso olhando para Lupércio – Está aqui Romeu, homem íntegro e soberano, senhor de ética ilibada e que pode ser a resposta para todos os anseios da nossa geração e das gerações futuras!
“Pronto” - pensou Lupércio – “A mulher endoidou de vez. Primeiro transformou-me no Romeu shakespeariano, e agora me coloca na berlinda do terceiro mandato” - Sentiu novamente todos os olhares das pessoas daquele vagão pra cima dele. A sorte foi que o trem fazia outra parada e muitos se preparavam para descer, inclusive, dona Julieta, com toda sua parafernália. Depois que as pessoas saíram, Lupércio levantou-se porque a próxima parada era a sua. Cumpriu sua tarefa no bairro e seguiu para a Estação Jabaquara, onde pegaria o metrô de volta. Enquanto aguardava a chegada do trem, ficou pensando naquela senhora, no que faz uma pessoa chegar àquele estado. “Não é comum as pessoas chegarem a esse ponto” – raciocinou – “Piração total, coisa dessa cidade tão grande, que deixa as pessoas malucas” – concluiu.
Desta vez não fez questão de sentar-se, apesar de vários lugares desocupados, não queria dar a chance de outra pessoa, por mais sã que fosse, aborrecê-lo no caminho. Foi ali, naquela toada, viajando em pensamentos e segurando firme nos apoiadores do trem que Lupércio esperava por seu destino. Na terceira Estação, quem ele avistou? Sua companheira de banco. O trem ainda não havia parado, fez uma torcida danada para que o vagão dele ultrapassasse o local de embarque da velha senhora. Em vão, a porta por onde entraria dona Julieta foi a de sua composição.
--- A sua Julieta está de volta Romeu, nem todas as nossas viagens conseguem separar nossas vidas. Segure seu filho, ele nasceu em Liverpool, é um lorde inglês – depois da fala, entrega um boneco de pano para que Lupércio o segure. Ele, por sua vez, viu que as pessoas estavam rindo e, de novo, sentiu-se acuado diante de toda aquela inquisição. Percebeu um calor subir por todo o seu corpo, achou que iria explodir, mas evocando seus mantras e descansos zens, resolveu participar daquela peça do absurdo. Segurou o boneco com um dos braços, já que o outro estava ocupado, mas procurou demonstrar carinho naquela cena. Dona Julieta abraçou-o e começou a cantar o início do hino francês:
“Allons enfants de la patrie,
Le jour de gloire est arrivé!
Contre nous de La tyrannie
L’étendard sanglant est levé...

Ao escutar o hino, Lupércio esboçou um leve sorriso. “Ela fala nos ingleses e canta os franceses. Vai entender?” A Estação Sé era a próxima parada, Lupércio fazia sua baldeação para a República naquele local. Quando o trem parou, rapidamente as pessoas foram saindo, mas de algumas ele escutou frases pejorativas sobre dona Julieta e até dele: “Que mulher maluca!” – disse um deles – “Mais maluco ainda é o marido da velha, ficou lá com cara de babaca segurando aquele boneco e achando que era o filho dele mesmo!”
Lupércio, com cuidado entregou o boneco para dona Julieta, despediu-se e saiu rápido do trem. O sinal avisando que a viagem prosseguiria logo foi dado. Ele viu o trem partir, registrou a imagem daquela velha senhora a quem tinha dado toda atenção, desaparecer lá longe. Subindo na escada rolante, quis uma explicação para tudo aquilo. Não conseguiu!

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